terça-feira, 24 de novembro de 2020

Marleide Cunha, a “persona non grata” eleita vereadora de Mossoró: “não me intimido com nenhum poderoso”.

Foto: Reprodução

Há uma semana, a vida de Marleide Cunha virou de cabeça para baixo. Considerada “persona non grata” pela Câmara Municipal de Mossoró, a pequena professora de 1,48m mostrou que na verdade é uma gigante: com 1528 votos, foi eleita vereadora pelo PT, deixando para trás até vereadores que haviam votado por conceder esse título a ela.

A pedagoga de 48 anos, nascida em Ipanguaçu-RN, começou a trabalhar cedo. Aos 17 anos, entrou numa sala de aula pela primeira vez como professora. Naquela época, mesmo sem graduação, era possível lecionar apenas com um curso de magistério. De lá pra cá, diz, “nunca mais saí do chão da escola”. Junto com a docência, iniciou também a graduação em Pedagogia. Se formou, fez especialização na área de formação de professores, e um mestrado em políticas e gestão da educação.

“Eu sou uma professora apaixonada pela educação, mas não um amor que imobiliza, que deixa a gente num romantismo. Esse amor pela educação me faz ir à luta, me faz defender a educação com unhas e dentes, me faz ser uma fera em defesa da educação pública”, afirma. Para Marleide, sua trajetória é resultado do ensino. “Eu sou de uma família muito humilde, e foi a educação que transformou toda minha vida. Acredito que a educação é capaz de transformar a vida das pessoas, e que transformando a vida das pessoas ela transforma a sociedade”, diz.

A atuação no sindicalismo começou primeiramente no Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do RN, o Sinte. Em 2008, ingressa na diretoria do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Mossoró (Sindiserpum), que viria a ser seu grande campo de batalha. A líder sindical se ausentou por alguns anos para se concentrar nas salas de aula, e em 2014 retorna já como presidenta, após vencer as eleições. Foi reeleita e segue “fazendo luta”. “Sempre participei de todas as assembleias com voz firme, de todas greves existentes até hoje, no estado e no município, porque realmente acredito que é no movimento que a gente transforma as coisas”, comenta Cunha. A paixão com que defende os ideais a fez voltar rapidamente para a presidência do sindicato, de onde estava licenciada durante a campanha. Quatro dias após ser eleita, Marleide já ocupava sua sala no Sindiserpum novamente, onde ficará até dezembro. “Tem uma frase que diz que ‘quem não se movimenta, não sente as correntes que te prendem’. Então como não tenho correntes, me movimento o tempo todo”. Para ela, é necessário que os trabalhadores estejam unidos, para evitar o que classifica de um “retrocesso” no país.

Em março de 2019, veio a grande reviravolta na vida da docente. Liderando a greve municipal dos professores, o Sindiserpum publicou “outdoors” por Mossoró em que acusava a prefeita Rosalba Ciarlini (PP) e os vereadores da base governista de serem “traidores dos servidores”, por não aprovarem o reajusto salarial da categoria. Enfurecidos, os vereadores aliados da prefeitura aprovaram em sessão única a concessão do título de “persona non grata”, expressão em latim que significa “pessoa não agradável”.

“Para mim foi uma surpresa muito grande, assim como foi para toda a sociedade. Porque é uma força do poder legislativo desproporcional contra uma cidadã. Eu sou uma professora que luta em defesa de direitos, que luta em defesa da educação, então como é que eu posso ser uma ‘persona non grata’, uma pessoa que faz mal ao município?”, questiona. Segundo Marleide, os vereadores queriam “se vingar pelo ego ferido, porque não aceitam críticas”. A forma de vingança, então, foi “manchar a história de uma pessoa”.

De acordo com a vereadora eleita, o episódio trouxe consequências na vida pessoal. “Eu não nego que causou uma dor muito forte, porque eu sempre vivi com base em princípios muito sólidos de verdade e honestidade”, diz. “Hoje eu estou aqui para contar que foi uma covardia, uma injustiça, que eu estava apenas lutando em defesa da população, dos servidores, dos professores, combatendo injustiças”. A retaliação, segundo a sindicalista, não veio apenas pela greve dos professores, “mas por conta da voz que eu faço ecoar nesse município, uma voz que combate a injustiça”.

Foto: Reprodução

Entretanto, o título de “persona non grata” pode vir à baixo nos próximos dias. O vereador Gilberto Diógenes (PT), aliado de Marleide e que apoiou sua candidatura, propôs um requerimento para retirar esse título concedido à pedagoga. Nessa semana, segundo Cunha, deve haver a votação para deliberar. Marleide, então, aguarda que a concessão deixe de ilustrar sua história. “O que eu espero, sinceramente, é que o poder legislativo e a base governista respeitem a vontade do povo. A vontade do povo de Mossoró ficou muito clara. É que eu não sou uma ‘persona non grata’”, argumenta. “Isso precisa ser corrigido e eu espero que esses vereadores tenham a honra, e reconheçam que foi uma tomada de decisão equivocada”. Assim, ela espera entrar em 1 de janeiro de 2021 na Câmara como uma “persona de coragem”, mote usado durante a campanha para se contrapor ao título ingrato.

Mas, se a concessão da expressão pelos vereadores governistas visava prejudicar a sindicalista, o tiro saiu pela culatra. Para Cunha, o título a projetou por toda a cidade, ajudando a conquistar mais de 1500 votos e se eleger vereadora. “O ‘persona non grata’ me trouxe visibilidade para toda a população. Eu andava nas ruas e as pessoas diziam: ‘foi muita covardia, a gente não concorda, a gente vai mudar isso’”, afirma. Porém, a eleição não veio só por causa disso: “é um conjunto de ações, de atitudes, das pessoas reconhecerem princípios éticos e morais, e que eu pretendo continuar honrando a confiança de cada um”.

Na próxima legislatura, porém, a petista não vai mais travar embates com a prefeita Rosalba Ciarlini. A ex-senadora e ex-governadora perdeu a reeleição. Em 2021, o Palácio da Resistência, sede da prefeitura, será comandado pelo atual deputado estadual Allyson Bezerra (Solidariedade). “Eu espero que a próxima legislatura seja independente, não seja tão subserviente como foi na atual. Foi uma coisa escandalosa”, afirma. Sobre se será oposição ou situação ao futuro prefeito, ela ainda não sabe. “Eu só digo uma coisa: vou estar lá fiscalizando, propondo, e se os direitos das pessoas forem desrespeitados, com certeza vou estar falando e sendo a voz de cada um e cada uma”, ressalta.

Para Marleide, a quantidade de mulheres na próxima legislatura é lamentável. Em 2016, cinco mulheres se consagraram nas urnas e chegaram à Câmara entre os 21 eleitos. Em 2020, entretanto, o número de vereadores aumentou para 23, mas apenas três candidatas mulheres se elegeram. “A gente precisa fazer com que as mulheres participem da política. Eu sei que não é fácil pra mulher. Se uma campanha já é difícil para os homens, para a mulher é mais difícil ainda porque ela tem que dar conta de tudo. Da campanha, da família, da casa, dos olhares, como se mulher na política fosse algo estranho”, explica.

Durante a campanha, uma das propostas de Cunha era plantar uma árvore para cada voto que recebesse. Com 1528 sufrágios alcançados, o desafio não será fácil, mas ela diz que vai cumprir “nem que tenha eu mesma que plantar cada uma”. “As pessoas as vezes são incrédulas porque talvez não tenham conhecido pessoas que realmente firmem compromissos que podem cumprir. Eu nunca digo que vou fazer algo se não puder fazer. E não acho que seja algo que dependa do Executivo, por isso me comprometi a fazer”, assegura. Para realizar o feito, ela pretende contar com a ajuda de outras pessoas. “A gente pretende criar espaços de convivência onde as pessoas possam se reunir nas comunidades. A gente tem geógrafos, biólogos, ecólogos, gestores ambientais, pessoas que têm interesse nessa pauta e vamos construir um projeto, fazer um cronograma para executá-lo. Com certeza serão plantadas 1528 árvores em Mossoró”, reforça.

No status do WhatsApp, a sindicalista e professora traz um verso de uma música do carnaval pernambucano: “sou madeira de lei que cupim não rói”. Segundo ela, o trecho é uma maneira de se impor. “Eu não me intimido com nenhum poderoso, porque eu acho que os poderosos só são poderosos quando a gente baixa a cabeça, quando a gente se ajoelha”, aponta. “Quando a gente se agiganta, então eles não são tão poderosos. É o conhecimento que me dá essa liberdade, essa autonomia de não ter medo, e enfrentar as dificuldades e aqueles que se acham donos das pessoas”, observa Marleide. “O conhecimento e os princípios que meus pais humildes fizeram com que eu seguisse na vida, ninguém me tira!”.

 Por Valcidney Soares (estudante de jornalismo da UFRN)

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