A pandemia do coronavírus fez aumentar não só o número de brasileiros que vivem na extrema pobreza como diminuiu a classe média ao seu menor patamar em mais de 10 anos em relação ao total da população. Pesquisa do Instituto Locomotiva mostra que, com o aumento do desemprego e o tombo da renda, esse grupo social deixou de compreender a maioria dos brasileiros.
De acordo com o estudo inédito antecipado ao G1, o percentual da população brasileira pertencente à chamada classe média tradicional caiu de 51% em 2020 para 47% em 2021 – mesmo 'tamanho' da classe baixa. A maior marca, segundo o Locomotiva, foi registrada em 2011, quando a classe média era 54% da população brasileira.
A pesquisa considera como classe média famílias com renda mensal per capita (por pessoa) entre R$ 667,87 e R$ 3.755,76.
O percentual de 47% foi calculado a partir de projeções e análises estatísticas do Locomotiva com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em números absolutos, a "classe média tradicional" foi estimada em 100,1 milhões de pessoas em março, contra 105 milhões em 2020. Ou seja, a crise trazida pela pandemia empurrou 4,9 milhões de brasileiros da faixa intermediária de renda para a classe baixa.
"Essa camada da população não tinha poupança, nem os recursos da elite para passar bem por essa pandemia. Também não contaram com auxílios emergenciais ou políticas voltadas para a base da pirâmide, que foi quem mais sofreu durante a crise", afirma o economista Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.
Ele, que pesquisa há 20 anos as mudanças nas classes sociais do país, explica que o processo de expansão da classe média no Brasil foi interrompido desde a crise que se iniciou em 2014. Mas foi a primeira vez em mais de 10 anos que a classe média deixou de representar mais da metade da população.
"Esses brasileiros, que mudaram de vida no início do século, hoje estão tendo um sentimento que há muito tempo não se via no país, o sentimento de perda. E perder dói muito mais do que deixar de ganhar", diz.
Renda em queda e endividamento em alta
Maria José de Almeida, a Nena, sofre esse impacto negativo da crise nos rendimentos. Aos 44 anos, ela tem quatro filhos: Jéssica, Lorrany e os gêmeos Maxsuell e Rikelmy. Como as meninas haviam saído de casa, o salário de R$ 2,5 mil por mês como empregada doméstica sustentava três pessoas.
Ainda na primeira onda da Covid-19 no Brasil, os dias de trabalho de Nena foram reduzidos à metade. Os ganhos passaram a ser de cerca de um salário mínimo. Não bastasse, Lorrany e o marido perderam o emprego. Sem dinheiro para o aluguel, cada membro do casal voltou para a casa dos pais. Nena recebeu a filha e a neta, Eloah.
"Meus filhos ficavam na escola, não tinha a filha em casa. Manter cinco pessoas com um salário mínimo é bem difícil. As contas começaram a atrasar", diz Nena.
Em tempos pré-pandemia, as contas da casa eram quitadas com R$ 1,8 mil. Agora, não há sobras. Eventualmente, recebe doação de cestas básicas da Central Única das Favelas (Cufa), que ajuda no orçamento.
Ainda assim, Nena foi obrigada a recorrer à antecipação do saque do FGTS para zerar os débitos e não sofrer corte de luz, por exemplo, cujo valor mensal triplicou. Ela não teve acesso ao Auxílio Emergencial, pois tinha registro em carteira na época das inscrições.
"Todo mês sobra uma conta para pagar. Até agora, deu tudo certo. Mas não sei como será nos próximos meses se essa vacina não vier logo", afirma Nena.
Uma pesquisa de opinião realizada pelo Locomotiva mostra que 6 de cada 10 brasileiros da classe média tradicional afirmam que a renda diminuiu no último ano. Desse recorte, 19% das famílias estão sobrevivendo com metade ou menos da sua renda pré-pandemia.
Ainda de acordo com o levantamento, 58% da classe média afirma que recorreu a bicos, vendeu algum bem ou abriu um negócio para obter renda extra após a chegada da pandemia. Mais endividados, 71% disseram ter ao menos uma conta em atraso. Na média, são 4,6 contas em atraso entre os inadimplentes.
O levantamento ouviu 1.620 pessoas, nos dias 21 e 22 de março, em 72 cidades em todos estados do país.
Entre os brasileiros de classe média entrevistados, 35% dos não conseguiram manter a doméstica ou a babá, 23% abriram mão ou perderam o plano de saúde e 18% daqueles que pagavam escolas particulares transferiram os filhos para escolas públicas.
Crise de perspectiva
Com o encolhimento da renda da população, o Locomotiva estima que a classe média deixará de consumir cerca de R$ 100 bilhões em 2021, representando um fator de dificuldade adicional para a recuperação da economia brasileira.
"A classe média quando não enxerga uma luz no fim do túnel, não investe no seu negócio, em uma faculdade, não faz crediário... E a crise de perspectiva faz com que a retomada da economia demore muito mais do que gostaríamos", afirma Meirelles.
Analistas têm destacado que o grande número de desempregados, a inflação acima do teto da meta, preocupação com a saúde das contas públicas e o chamado risco fiscal dificultam uma retomada da economia.
A consultoria Tendências, por exemplo, projeta o retorno da recessão técnica em 2021, com quedas no PIB de 0,6% para o primeiro e 0,9% para o segundo trimestre deste ano. Para o ano todo, a projeção é de alta de 2,7%, uma recuperação fraca, e que ainda depender do ritmo de vacinação contra a Covid-19. A estimativa média dos analistas do mercado financeiro está atualmente em 3,08%.
Para quem permaneceu na classe média, essa estagnação complica a criação de novos empregos e uma situação mais confortável. Mas, para quem 'cai', a chance de retorno fica ainda mais distante. Um crescimento em xeque somado à redução de benefícios sociais dão a equação de dificuldades extras para as classes de renda mais baixa, tirando de perspectiva uma ascensão.
No ano passado, o Auxílio Emergencial mais que compensou a queda de rendimentos do brasileiro, mas o prospecto para esse ano, com parcelas menores, é negativo. Nos cálculos da Tendências, a massa de renda ampliada na economia (que agrega salários, benefícios sociais, previdência e rentabilidade de investimentos) subiu 5,3% em 2020, apoiada no auxílio. Neste ano, a queda deve ser de 3,8%, com depósitos menores e geração de empregos que não compensará as perdas da pandemia.
Nas classes D e E, a variação de renda entre um ano e outro será uma montanha russa. A primeira rodada do Auxílio Emergencial, com parcelas de R$ 600 e redução no fim do ano para R$ 300, elevou a renda desse extrato social em 23,4%. Com as quatro parcelas de R$ 250 previstas para a segunda rodada, a queda de rendimentos deve chegar a 14,4% em 2021.
"Quase 50% da renda dessas famílias das classes D e E vem de previdência e transferências sociais. Com o quadro fiscal do país, que prevê apenas recomposição de inflação para o salário mínimo e aumento sensível do Bolsa Família, a mobilidade social fica muito mais difícil", diz Alessandra Ribeiro, diretora de macroeconomia da Tendências Consultoria.
Problemas estruturais
Para os economistas consultados pelo G1, o aumento da desigualdade social durante a pandemia traz ainda efeitos de longo prazo na formação educacional do brasileiro.
A absorção do currículo básico na escola e as relações interpessoais são apenas dois dos fatores prejudicados pela pandemia e que compõem o desenvolvimento de habilidades de crianças e adolescentes. Estudantes mais limitados nessa formação inicial resultam em profissionais com menor qualificação e, por consequência, menor produtividade e renda.
"A disparidade educacional, que existe entre diferentes nível socioeconômicos, será intensificada nessa geração e carregada ao longo da vida. O grande desafio da política educacional dos próximos anos é tentar minimizar esse processo", diz Rodrigo Soares, economista e professor do Insper.
"E a situação das finanças públicas vai ter implicações para a capacidade do governo de fazer política pública nesse sentido", prossegue Soares.
Após um ano de pandemia e com campanhas de vacinação em marcha lenta, 18 estados brasileiros ainda mantém aulas de forma remota, o que limita acesso de estudantes mais pobres. Segundo a Unicef, um total de mais 5 milhões de crianças e adolescentes não estão participando de maneira regular da escola no país.
"Isso está nos levando para trás. Já calculamos que isso nos fez regredir duas décadas em número de crianças e adolescentes desvinculados da escola", disse Florence Bauer, representante do Unicef no Brasil, no último dia 5.
Por G1/RN
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